E-learning em contexto prisional: a aprendizagem ao longo da vida como mecanismo de integração social

E-learning em contexto prisional: a aprendizagem ao longo da vida como mecanismo de integração social

Os programas de reabilitação e de reintegração de pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial são um dos enfoques da educação de pessoas adultas, enquadrados no paradigma da Aprendizagem ao Longo da Vida e, desde 2015, no objetivo de desenvolvimento sustentável 4 – Educação de Qualidade, definido pela Organização das Nações Unidas. Todavia, a discrepância entre os discursos dos organismos intergovernamentais responsáveis pelas políticas macroscópicas de educação e a realidade constatada no terreno é muitas vezes gritante. Das pessoas que se encontram em situação de clara exclusão social destaca-se a população prisional e, dentro deste grupo, maior vulnerabilidade é observada quando a questão é colocada no feminino.

Em 2014, o EPRIS foi aprovado como projeto piloto para a promoção de competências digitais em mulheres que se encontravam em cumprimento de pena, como contributo para sua futura adaptação socio laboral, fora do estabelecimento prisional. O EPRIS apresentava-se como um projeto inovador de aprendizagem não formal, que perspetivava o e-learning como um dispositivo de diferenciação pedagógica, criador de oportunidades de aprendizagem que nunca tinham sido experimentadas no sistema prisional português. A novidade incluía a possibilidade que as reclusas tinham de estudar na cela, ter consigo os computadores e responsabilizarem-se por eles. O protocolo de cooperação estabelecido entre o Ministério da Justiça, representado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), a Santa Casa da Misericórdia do Porto e o Instituto Piaget, entidade promotora e formadora do projeto, concretizou-se no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – Feminino, situado em Matosinhos.

A implementação do projeto revelou que as aprendizagens não se circunscreveram às reclusas, mas alargaram-se a toda a equipa de formação, de tal forma que o projeto se reinventou, transformando-se num projeto de b-learning, considerando as especificidades destas aprendentes, caracterizadas por percursos educativos atribulados, recheados de insucessos e geradores de frustração.

O primeiro módulo de formação consistiu na adaptação de um sistema de gestão de aprendizagem (Moodle), disponibilizado para o efeito pela DGRSP, ao qual se seguiram módulos de informática básica (processamento de texto, folha de cálculo e utilitário de apresentação gráfica). Em edições posteriores do EPRIS outros módulos de formação foram introduzidos, nomeadamente módulos em relação aos quais as reclusas mostravam interesse (empreendedorismo, técnicas de procura de emprego, comunicação e expressão em língua portuguesa e parentalidade e estilos educativos parentais).

Sendo o EPRIS um projeto de investigação-ação, foi possível à equipa responsável produzir conhecimento e partilhá-lo com a comunidade científica, a partir dos dados recolhidos ao longo do processo da sua implementação. Para além das competências digitais que se pretendiam desenvolver, verificaram-se mudanças no “Sistema do Eu” das mulheres participantes, que se vieram a apresentar mais confiantes nas suas capacidades, mais autovalorizadas, e com um conceito de si mesmas, enquanto aprendentes, mais favorável.

Os resultados encontrados logo na primeira edição do EPRIS foram reforçados na sua segunda e terceira edições, esta última finalizada em dezembro de 2022 e muito impactada pelos confinamentos e normas de saúde pública decorrentes da pandemia por SARS-Cov 19, e ainda pelas greves dos guardas prisionais. Em todo o caso, ficou demonstrado que aprender online em contexto prisional não só é possível como desejável. A prisão não é o espaço ideal de aprendizagem. Mas aprender dentro da cela, gerir os ritmos e os tempos próprios para aprender, compreender que errar faz parte do processo de aprendizagem são, seguramente, importantes conquistas em termos de autonomia e de autorregulação da aprendizagem, dificilmente conseguidas de outra forma.

Permanece, ainda assim uma questão de relevância extrema: como implementar um projeto desta natureza e, simultaneamente, acautelar as questões de segurança? Do ponto de vista técnico, a customização dos equipamentos, a construção de uma solução técnica que assegurasse uma ligação de net ponto-a-ponto (intranet) e uma supervisão continuada permitiram, objetivamente, superar constrangimentos daquela natureza. Quanto às resistências pessoais e receios (legítimos) por parte dos agentes que trabalham neste contexto e, em particular, os guardas prisionais, importou ativar os processos de participação, nos quais todos foram ouvidos e todos tiveram voz, nos quais todos estiveram envolvidos e puderam participar nos processos de tomada de decisão, incluindo as próprias reclusas.

Participação, flexibilidade e envolvimento parecem ser as palavras de ordem que poderão inspirar projetos congéneres. Desde o início, foi preocupação da equipa do EPRIS dar a conhecer o projeto à comunidade em geral, através dos mass media (radio, jornal nacional, eventos e textos de opinião, disponibilizados online). Esta preocupação estava em sintonia com a premissa de que a substituição de uma lógica punitiva da reclusão por uma outra de natureza reabilitativa estava dependente da representação social do(a) recluso(a). Havia, por isso, que revelar às pessoas o poder transformador da educação, quase que num pendor Freiriano, de que a Educação não transforma o mundo, mas transforma pessoas e que estas, sim, transformam o mundo.

Talvez esta visibilidade tenha contribuído para que o EPRIS viesse a receber, no contexto nacional, a insígnia do INCOde.2030 e o reconhecimento por parte de múltiplos organismos da sociedade civil, assim como de empresas, da qual se destaca como patrocinadora a Altice Portugal. Também a atribuição do Prémio BPI Solidário 2019 permitiu a aquisição de novos equipamentos e a concretização da terceira edição do projeto. Preparando-se para a sua quarta edição, o EPRIS pretende articular-se com outros projetos que decorram no espaço prisional ou novas ideias que, através do contributo do EPRIS, possam vir a ser uma realidade. Estando o projeto alocado à RECI (Research Unit in Education and Community Intervention), uma das unidades de investigação do Instituto Piaget, a internacionalização do projeto é outro dos grandes objetivos, traduzido na criação de redes e de sinergias, sustentadas na cooperação e no desiderato último de promover as aprendizagens, o bem-estar e o futuro da população prisional, particularmente a feminina.

(Artigo publicado originalmente na “Plataforma Barómetro Social” do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto)


Rita Barros

Docente do Instituto Piaget

Coordenadora da RECI – Research Unit in Education and Community Intervention